O dom

Todos os seres humanos têm um dom. Um dom que por vezes está escondido bem no fundo do espírito, algo que está presente e é definido no exacto momento da concepção, mesmo quando o óvulo é fertilizado. Cada dom é diferente em cada pessoa, e devido ao facto da espécie humana ser ainda recente, devido a não estar ainda nem a 10% do máximo potencial enquanto ser inteligente, esses dons ainda não se manifestam da forma como acontecerá num futuro distante.

O cérebro humano foi pré-definido para evoluir de uma forma única no Universo, não fosse ele a pérola desse mesmo Universo, o expoente máximo da matéria visível, ainda que precoce, ainda que no início das suas potencialidades.

Apesar de apenas ocupar meio metro quadrado de espaço, pesar 1,5 quilogramas, e constituir apenas 2% do peso total de um corpo humano, este recebe um quarto de todo o sangue bombeado pelo coração. Do lado esquerdo do cérebro temos o pensamento lógico e a capacidade de comunicar, no direito está a criatividade e o pensamento simbólico. O corpo caloso tem a responsabilidade de ligar os dois hemisférios e milhões e milhões de neurónios.



Há cerca de 3 anos descobri o meu dom. Não deve ser um dom comum, e embora não me sirva para nada no meu dia-a-dia, faz com que eu me divirta imenso. Não é acordado que o meu dom se manifesta, por isso não o posso provar, é a dormir, é quando entro no mundo irreal dos sonhos, no mundo onde as nossas vivências, lembranças, convicções e gostos pessoais se juntam para formar as imagens criadas pela nossa imaginação. Mas será só isto?

A primeira vez que o meu dom se manifestou estava a ter um pesadelo. Algo vinha a correr atrás de mim, e o meu subconsciente despertou o meu consciente, acordou-o. Nesse momento lembro-me de pensar com uma clareza incrível e mandei o meu cérebro acordar com a consciência de que o estava a fazer. E acordei.

A partir desse momento tinha aberto uma porta no meu cérebro. Algum tempo depois, outro pesadelo fez com que o meu subconsciente desse o alerta de novo, mas quando fiquei consciente, em vez de querer acordar, decidi manter-me dentro do sonho. E a partir daqui o meu dom estava vivo.

Este dom consiste em estar consciente quando estou a sonhar. E se no ínicio só em raras ocasiões o conseguia fazer, agora já o faço sempre que me lembro do sonho que estou a ter. Por vezes acordo exausto, extasiado com as maravilhas que presencio. Falo de um nível de consciência em que estou dentro do sonho e estou consciente de que estou a sonhar, e movo o meu corpo no meu sonho a meu belo prazer, direccionando-o para onde quero, manipulando a minha própria fantasia. Quando acordo lembro-me de tudo como se estivesse acordado.

O que mais gosto de fazer é voar. Lembro-me que sempre que alcanço a consciência num sonho, a primeira coisa que faço é voar. Tenho uma cidade que já vasculhei todos os becos, todas as vielas. Essa cidade tem uma igreja, na qual eu poiso no seu telhado, o qual tem uma abertura que vai dar a uma sala que tem uma secretária estilo século XV. Um dia notei que essa secretária tem uma gaveta. Abro a gaveta e retiro um livro. Lembro-me perfeitamente de abrir o livro e não conseguir ler as suas letras, de serem tão minúsculas, e semicerrar os olhos de modo a focar melhor a imagem, mas as letras são pequenas demais... Vôo dali para o telhado de novo e penso que tenho de arranjar uma lupa em qualquer canto da cidade... É estranho que mesmo no meu próprio sonho, e mesmo no meio das minhas fantasias, não consigo simplesmente fazer com que uma lupa apareça nas minhas mãos... Como se a dificuldade de ler aqueles caracteres fosse inerente à própria importância do sonho.

Quase sempre acordo na tentiva de encontrar uma lupa.

Não sei se este tipo de consciência é comum, se é perfeitamente banal, ou se pode realmente tratar-se de um dom. Num dos meus sonhos lembro-me de encontrar uma árvore, uma árvore diferente, como eu nunca tinha visto. Lembro-me de olhar para ela, curioso, e vislumbrar uns frutos, do tamanho de ameixas, cuja cor não me recordo. Era um fruto que nunca tinha visto, não existente na terra - não é que conheça todos os frutos da terra, mas aquele, aposto não era. Olhei para ele, e trinco-o... Um sabor maravilhoso me invade o meu consciente, algo indescritível, único, um sabor digno dos Deuses! Não posso dizer que seria parecido com uma mistura de X fruta com Y fruta, pois tal sabor é bom demais para ser real... Por vezes lembro-me e vou à minha árvore de fruto, saborear o melhor sabor que alguma vez poderei sonhar.

Eram 2h e qualquer coisa. Acabo de ler mais umas linhas do meu livro de cabeceira, fecho o livro, apago a luz, e 40 minutos depois estou a dormir.Estou a ter um sonho banal até que... "Boa, estou consciente!" Não digo exactamente estas palavras, mas é sempre bom quando constato de que me vou divertir mais uma noite. Mais uma noite sem dormir...

Andava a deambular pela cidade quando vejo alguém lá em baixo, e é raríssimo encontrar alguém nos meus sonhos, em 99% dos meus sonhos a cidade está deserta. É um homem com +- 1,70m, magro, cabelo escuro. Começa por me dizer:" Bem-vindo! É bom encontrar mais gente por aqui. Sei que estás por aqui há pouco tempo, e que queres uma coisa. Dou-te o que tu queres se me mostrares a árvore com aqueles frutos que adoras. Gostava de prová-los."

"Mas quem és tu? Como estás aqui? Conheces-me?" - perguntei-lhe eu.

"Sou um dos que já anda aqui à muito. Entro e saio quando quero, e pareceu-me fascinante a tua árvore de fruto. Levas-me lá ou não?"- disse ele.

Levei-o então, num majestoso e veloz vôo até à minha árvore de fruto. Peguei em 4 ou 5 e dei-lhas. Ele leva uma à boca e diz: "Realmente são divinais! O melhor fruto que já comi até hoje!"

E então, retira um objecto do bolso e diz-me:" Toma, dou-te esta lupa em troca. Diverte-te!" E desaparece. E eu acordo, a pensar para comigo que, se por um acaso nunca mais retomasse o mesmo sonho, nunca saberia o que estaria naquelas palavras minúsculas, naquele livro enfiado naquela gaveta da igreja...

Passaram-se meses sem conseguir manipular novo sonho. Até que o rastilho se acendeu. Estava a sonhar e houve o "click". Estava consciente. A primeira coisa que me lembrei foi ir ao meu bolso, ver se estava a lupa. Lá estava ela, como se estivesse tão ansiosa como eu de saber, de saber mais. Olhei à volta e vi que não estava na minha cidade... deambulei e estava num local estranho, habitado por pessoas estranhas e desconhecidas para mim.

Foi então que tive uma ideia: voar em linha vertical, o mais que possa, de modo a ver até onde poderia ir, tal qual um Ícaro curioso. Começo a voar, o mais rápido que pude, e por vezes olhava para trás e via a terra a fugir debaixo de mim, voei, voei, voei, até que paro e estou a uns bons quilómetros de altitude. Pude ver com definição que por baixo de mim estava um território qualquer. Mas eu queria mais, queria sair da estratosfera do meu sonho, queria entrar no espaço sideral do meu subconsciente. E voei, voei, voei, até que pude ver um globo azul, e tive noção que estava no espaço.

Não sei como, mas distingui a minha cidade daquela altura, como se aquela localização estivesse no meu sangue. E dirigi-me para lá, a uma velocidade de vôo nunca antes experimentada.

(continua)


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